Dalva M B Bonotto
Depto de Educação
IB – UNESP/ Rio Claro
Email: dalvambb@rc.unesp.br
Perdão se quando quero
contar minha vida
é a terra que eu conto.
Esta é a terra.
Cresce em teu sangue.
E cresces.
Se se apaga em teu sangue
te apagas.
(Pablo Neruda, 1978)
Nesse texto, escrito de forma bastante tímida em função de minha aproximação muito recente e ainda muito limitada dos escritos de Bakhtin, procurei trazer algumas reflexões e inquietações com as quais tenho me ocupado com relação à temática ambiental, tentando relacioná-las com alguns apontamentos de Bakhtin presentes nas leituras que realizei, os quais vieram ao encontro dessas reflexões e me tocaram.
Refletindo sobre a questão ambiental, posta para a sociedade de forma contundente a partir das últimas décadas do século passado, concordo com os autores que a consideram uma crise civilizatória mais abrangente, conseqüência de um padrão insustentável de relação sociedade-natureza. Os problemas ambientais atuais, de dimensões espaciais e temporais cada vez maiores, têm exigido uma revisão desse padrão para um enfrentamento mais adequado desses problemas.
Nesse sentido, uma das formas de enfrentamento que têm sido consideradas envolve o processo educativo. Propostas de desenvolvimento de atividades educativas relativas à questão ambiental visam, em última instância, educar cidadãos que colaborem para o processo de avaliação desses problemas e seu encaminhamento mais adequado.
No entanto, é geralmente a partir de uma visão racionalista de mundo que operam nossas instituições sociais – inclusive a educativa – o que acaba por limitar a proposição de formas adequadas de agir frente à crise ambiental. Tal visão, em nossa sociedade ocidental, se constituiu a partir da perspectiva metodológica cartesiana (em que a natureza se tornou um objeto à disposição da razão humana), sendo reforçada pela objetividade científica de Galileu (na qual se desconsidera as qualidades sensíveis) e pela concepção utilitária de Bacon (na qual a natureza é considerada pelo seu valor de uso). Todas essas proposições reduziram a natureza a um objeto de estudo e dominação, passivo e sem encantos, a ser explorada. Muitas críticas atuais têm apontado para esse problema e condenam essa visão racionalista e instrumental pela qual apreendemos a natureza apenas como um objeto - fonte de recursos - e que, separando natureza e sociedade, fato e valor, ciência e ética, estaria na origem de muitos problemas atuais, inclusive os ambientais (GRÜN, 1996).
Várias tentativas de abandonar tal reducionismo têm sido feitas e, dentre elas, em muitas propostas de educação ambiental, a exploração da dimensão estética frente à natureza é uma perspectiva que tem se apresentado como promissora. Dirigindo-se à natureza não somente pela via do olhar racional, mas pela via da apreciação estética, abrindo espaço para a expressão da subjetividade diante desta experiência, poderíamos possibilitar a construção de outra forma de relacionamento (BONOTTO, 1999).
Grün (2007), considerando também a crítica a esse racionalismo, aponta para a necessidade de uma compreensão não instrumental da natureza a partir do conceito de outridade. Para ele, a compreensão da natureza só será possível se envolver em seu cerne o respeito pela alteridade do Outro em sua diversidade, uma relação não técnica, mas uma experiência autêntica, em que nos comprometemos com ela. Para esse autor, a verdadeira experiência da natureza só pode realmente ocorrer quando esta é tratada como “Tu” e não mais como “coisa”.
Lendo a obra “Para uma filosofia do ato responsável” de Bakhtin (2010), alguns apontamentos que nela encontrei me fizeram voltar a essas reflexões, me permitindo reforçar a idéia de que a apreciação estética possibilitaria ampliar nossa experiência com a natureza de forma não objetificadora, mas tendo-a como o outro de uma relação diferenciada.
Ao buscar quebrar a atual indiferença construída perante uma natureza que nos é estranha – um outro com o qual não nos sentimos envolvidos - a empatia, momento essencial da contemplação estética (Bakhtin, 2010) pode significar um primeiro passo importante. Embora reconhecendo, com Faraco (in Bakhtin, 2010) que “nem o conhecimento teórico nem a intuição estética podem oferecer uma aproximação ao existir real único do evento” (idem, p.67), pois que isso dependerá da disposição moral da consciência individual, é preciso considerar que “o ser estético está mais próximo da unidade real do existir-como-vida do que está o mundo teórico” (idem, p.66), ou seja, na experiência estética, ficamos mais próximos do mundo da vida.
A partir dessa experiência, permeada por uma atenção amorosamente interessada, se pode “desenvolver uma forma muito intensa para abraçar e manter a diversidade concreta do existir”. Contrária a essa perspectiva, como aponta Bakhtin (2010) é a reação indiferente e hostil, “uma reação que empobrece e desintegra o objeto: passa longe do objeto em toda a sua diversidade, o ignora e o supera” (idem, p.128), e que caracteriza o tipo de relação ser humano-natureza que se quer superar.
Em um processo educativo ainda calcado (quando muito) na ênfase dada ao desenvolvimento cognitivo-racional, em que o domínio dos conhecimentos teóricos é entendido como suficiente para se compreender - e viver - o mundo, a experiência estética pode ser encarada como uma complementação necessária, podendo aproximar o sujeito de um conjunto de conhecimentos e valores ambientalmente válidos de forma a que se tenha uma possibilidade maior de afirmá-los para si, a partir de um caminho em que “uma consciência viva torna-se uma consciência cultural e uma consciência cultural encarna em uma consciência viva”(idem, p.89).
É preciso ressaltar que não desejo cair em uma contraposição reducionista entre conhecimento teórico e mundo vivido e sim considerar, com Bakhtin (2010), que estes conhecimentos, assim como os valores acumulados pela humanidade são necessários embora não suficientes para fundar os atos de cada um. A ênfase dada à experiência estética é no sentido de destacar seu papel de aproximar-nos do outro, experiência indispensável para o agir moral, que em última instância somente se dá em relação, não sendo nunca solitário.
Reconhecer a outridade da natureza, estabelecer com ela uma relação a partir da experiência estética mostra-se assim como um caminho promissor para se construir uma arquitetônica do mundo real tal qual Bakhtin a apresenta, tornando explícitos “estes momentos emotivo-volitivos centrais: eu, o outro, e eu-para-o-outro” (idem, p.115).
Conforme bem explicita Ponzio (in Bakhtin, 2010),
a interpretação-compreensão da arquitetônica pressupõe que ela re realize a partir de uma visão externa, extralocalizada, exotópica, outra, diferente e ao mesmo tempo não indiferente, mas participativa. Postam-se assim dois centros de valor, aquele do eu e aquele do outro, que são ‘os dois centros de valor da própria vida’, em torno dos quais se constitui a arquitetônica do ato responsável (p. 30).
A experiência estética nos aproxima dessa construção, indispensável ao se pensar uma educação voltada para a construção de sujeitos capazes de estabelecer padrões (mais) responsáveis de viver e agir no mundo - natural e construído - que habitamos.
Considerando essas reflexões, retomo com Carvalho (2006) que para a educação ambiental dar conta dos desafios postos pela questão ambiental, ela deve envolver de forma articulada as dimensões de conhecimentos, valores (éticos e estéticos) e a participação política, de modo que uma dimensão potencialize as demais e juntas ofereçam condições para a construção de um sujeito mais responsável e de uma sociedade mais justa e sustentável. Ou seja, busca-se com essas dimensões o que Bakhtin (2010b) propõe ao considerar a ciência, a arte e a vida: que elas não se justaponham mecanicamente, mas adquiram sentido para o indivíduo que as incorporará na unidade de sua responsabilidade, a se refletir em sua relação com o mundo.
“Flores, árvores e um gramado,
Um ambiente verde,
Que se olharmos de relance,
De nada nos importará.
Flores, árvores e um gramado,
Um ambiente verde,
Que se observarmos bem,
Notaremos que fazem parte
Da nossa vida e que são
Indispensáveis para o dia que virá.
Indispensáveis porque, é de lá
que sai a sombra de que tanto gostamos, é de lá
que sai as flores que tanto adoramos, é de lá
que sai a paz que às vezes procuramos, e é de lá
que sai o ar de que todos nós precisamos.”
(Autora: aluna T.R.P., 1998 -
exercício expressivo realizado
após atividade de apreciação das
áreas verdes da escola onde estudava.)
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, M. M. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
_______________. Estética da criação verbal. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010b.
BONOTTO, D.M.B. A temática ambiental e a escola pública de ensino médio: conhecendo e apreciando a natureza. Rio Claro, 1999, 278p. Dissertação (Mestrado em Conservação e Manejo de Recursos) – Centro de Estudos Ambientais, UNESP.
CARVALHO, L.M. A temática ambiental e o processo educativo: dimensões e abordagens. In: CINQUETTI, H. C e LOGAREZZI, A. (orgs.) Consumo e resíduo: fundamentos para um trabalho educativo. São Carlos: EdUFSCar, 2006, p.19-41.
FARACO, C. A. Um posfácio meio impertinente. In: BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
GRÜN, M. Em busca da dimensão ética da Educação Ambiental. Campinas: Papirus Editora, 2007.
_________. Ética e Educação Ambiental: a conexão necessária. Campinas: Papirus Editora, 1996.
PONZIO, A. A concepção bakhtiniana do ato como dar um passo. In: BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
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