segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Alterações de Linguagem nas Epilepsias: um estudo neurolinguístico pautado na perspectiva enunciativo-discursiva e nas contribuições de Bakhtin


Danielle Patricia Algave
Este texto deriva de minha pesquisa de mestrado sobre as alterações de linguagem nas epilepsias e tem como propósito aprensentar um pouco deste trabalho e da importância que atribuímos a Bakhtin em nossas análises. Ao considerarmos as alterações de linguagem nas epilepsias, é relevante termos em mente a concepção de linguagem que Bakhtin nos traz e olharmos para as produções dos sujeitos buscando compreendê-las com base nas situações interacionais dadas em um momento específico. Os conceitos Bakhtinianos e as questões éticas da pesquisa em Ciências Humanas são de especial relevância para nosso trabalho. Neste ponto de vista, devemos considerar que o empreendimento teórico esquece das singularidades e particularidades de nosso objeto de estudo e, portanto, não podemos encerrar este objeto na teoria, pois assim estaríamos limitando-o e não produzindo ciência. Este é um ponto-chave que consideramos ao buscar compreender as alterações de linguagem produzidas por sujeitos epiléticos. Ademais, devemos estar preparados para as descobertas dentro do tema que propomos, o qual é pouco estudado por especialistas da linguagem, e buscar reconhecer estas descobertas mesmo que forem inaceitáveis de acordo com nossas idéias e não tentar ignorá-las ou enquadrá-las no método que usamos ou nos interesses de nossa pesquisa.
A epilepsia tem sido um distúrbio neurológico bastante discutido e investigado recentemente, de modo que se tornou o centro das atenções nos estudos neurológicos e neurofisiológicos. Nesse contexto, torna-se relevante estudar as alterações de linguagem, decorrentes das crises, descritas na literatura de forma superficial, desprovidas de análises lingüísticas.
Na área de Neurolingüística do Instituto de Estudos da Linguagem/UNICAMP, as afasias têm sido um dos temas mais importantes para as pesquisas, mas não há ainda trabalhos que relacionem sua ocorrência aos casos de epilepsias. Faz-se necessário discutir, inclusive, se os fenômenos lingüísticos nestas patologias são da mesma natureza daqueles que emergem em conseqüência de AVCs, traumatismos crânio-encefálicos, tumores etc. e também discutir se é apropriado atribuir o rótulo de afasia (como fazem os estudos tradicionais) às alterações de linguagem observadas nas epilepsias. Julgamos ser importante nossa participação enquanto linguistas no estudo das alterações de linguagem nas patologias, como propunha Jakobson, há mais de cinqüenta anos, já que se trata de um campo ainda predominantemente abordado por profissionais da saúde (neurologistas, neuropsicólogos, psicólogos, psiquiatras e fonoaudiólogos, por exemplo), centrado em uma perspectiva orgânica e biológica dos fenômenos. Podemos contribuir, sobretudo, para a compreensão das alterações e para o desenvolvimento teórico-metodológico da área.
Há também outros fenômenos que ocorrem nos quadros de ELT que merecem atenção, como as alucinações visuais que são relatadas por sujeitos durante ou após as crises. Cytowic (1996), por exemplo, cita um paciente que “via” apenas animais dentro de um quarto. Segundo o autor, isso remete à discussão sobre o papel que o lobo temporal tem na organização e “armazenamento” de informações lexicais ou na chamada “memória semântica”.
A palavra ‘epilepsia’ é de origem grega e significa ‘fulminar, abater com surpresa, ser atacado; algo que vem de cima e abate o indivíduo’.  É uma doença conhecida desde épocas muito remotas, com relatos de 3.000 anos em linguagem acadiana. Na antiguidade, a epilepsia era relacionada aos distúrbios de comportamento, como a loucura, e acreditava-se que ambas estariam relacionadas à fleuma. Por muito tempo, a epilepsia foi tida como um indicativo de possessão ou acúmulo de humores do mal. Hipócrates (460 a 377 a.C.) começou a contestar tal idéia em seu livro ‘Sobre a Doença Sagrada’, afirmando que a epilepsia teria, na verdade, origem cerebral. Hoje se sabe que todas essas explicações estavam equivocadas e que a epilepsia é causada por uma hiperatividade dos neurônios e circuitos cerebrais e se caracteriza por crises espontâneas e recorrentes, convulsivas ou não, originadas por descargas elétricas parciais ou generalizadas no cérebro, sucessivas ou não, excessivas e repentinas e que causam alterações no comportamento, podendo ocorrer em múltiplas estruturas encefálicas e obedecer a situações condicionantes e causais muito diversas.
Algumas fontes defendem que a epilepsia é o transtorno neurológico mais comum na população. Ocorre mais freqüentemente em crianças e jovens e traz como conseqüência marcas de estigma, comprometendo o aprendizado escolar e outras atividades.
As crises epiléticas têm início, meio e fim bem definidos e podem ser classificadas como generalizadas - quando a descarga inicial envolve ambos os hemisférios cerebrais - ou parciais - que têm um foco inicial de ataques. Durante as crises parciais, em razão das alterações motoras, o indivíduo pode apresentar alterações afásicas e fonatórias. Nas crises parciais que envolvem a área da linguagem, o indivíduo adulto pode apresentar dificuldades na compreensão de palavras faladas ou escritas, fala inadequada e ininteligível com a presença de estereotipias. O foco destas crises, na grande maioria dos casos, encontra-se no lobo temporal e o comportamento do sujeito depende da região onde ocorre a descarga elétrica.
Algumas crises focais podem trazer um comprometimento momentâneo da linguagem falada ou escrita. Se a crise ocorre enquanto se está escrevendo, pode haver omissões de palavras e linhas “deformadas”, ocasionadas pela perda da consciência.
As crises prolongadas, por sua vez, provocam um desequilíbrio metabólico que vem acompanhado de uma intensa liberação de substâncias excitatórias, dando origem a lesão de estruturas cerebrais sensíveis como, por exemplo, do hipocampo. Essa lesão é caracterizada pela morte celular, rearranjo das conexões sinápticas e alterações nas propriedades intrínsecas das células nervosas. Após um período variável de recuperação (fase latente), as redes neuronais tornam-se epileptogênicas, ou seja, tornam-se capazes de causar crises.
Os “distúrbios da fala” desencadeados pelas epilepsias, geralmente caracterizados como “afasias”, podem ser classificados em transitórios e crônicos. As afasias transitórias, que ocorrem no momento da “aura” podem apresentar vários graus, desde uma pequena dificuldade para “selecionar palavras” até o mutismo completo e manifestações mais escassas como a disartria e a gagueira, por exemplo. Já nas manifestações crônicas, emergem a disartria e uma fala arrastada, monótona e “cansada”. Há relatos de que crianças epilépticas apresentem distúrbios de expressão verbal, como repetição descontrolada de uma palavra ou frase. Em estudo realizado com dez casos de afasia infantil consideradas de origem epiléptica, com início das crises por volta dos 5 ou 6 anos, constatou-se também a presença de uma leve perda auditiva que, quando melhorava, coincidia com a piora da compreensão e da fala. Relatos de alterações lingüísticas durante e após as crises epiléticas são explicadas pelo fato de que as descargas elétricas excessivas interferem no funcionamento normal do córtex.
Os efeitos da epilepsia sobre a linguagem, que vão além do momento da crise ou de sua aura, têm sido discutidos em diversos estudos. Os relatos dizem respeito às disfasias do desenvolvimento, afasias críticas (agudas) com alteração transitória das funções cognitivas e a afasia epiléptica adquirida (Síndrome de Landau-Kleffner), caracterizada pela alteração da linguagem já na infância. Outros sinais são relatados, como a uniformidade na voz, perseveração, a afasia “assemântica”, parafasias em diferentes graus de manifestação, formulação imprecisa, dislexias, disortografias e alterações na estrutura espacial. Nota-se que a semiologia das epilepsias é a mesma que caracteriza as afasias.
Além dos relatos sobre as alterações cognitivas, há relatos relacionados de distúrbios psíquicos que podem estar relacionados às epilepsias, uma vez que estas são confundidas com psicose ou com a esquizofrenia. A associação entre epilepsia e esquizofrenia ou outras psicoses funcionais parece ser, na opinião de alguns autores, de origem etiológica e não uma simples co-ocorrência de sintomas. A epilepsia, em combinação com psicoses, pode envolver diversos sintomas relacionados à linguagem, dentre os quais a produção de neologismos, e também relacionados a fenômenos perceptivos como as alucinações olfativas, gustativas, auditivas e visuais, muito comuns na ELT.
As reflexões realizadas em nossa pesquisa são pautadas pela Neurolinguística Enunciativo-Discursiva e orientadas pelas análises microgenéticas e pelo paradigma indiciário de Ginzburg, que inspirou o conceito de dado-achado postulado por Coudry.
A neurolinguística enunciativo-discursiva foi inspirada pela Análise do Discurso de orientação francesa e na concepção de linguagem formulada por Franchi (1977). Coudry defende que o sujeito faz uso do sistema linguístico para dar significação e estabelecer relações interpessoais e que, portanto, não é possível concebermos a linguagem sem considerar seu funcionamento e a atividade do sujeito. Apoiada nas idéias de Vygotsky (1997), essa Neurolingüística entende a linguagem e a memória como atividades cognitivas complexas, de natureza social. Portanto, grosso modo, podemos dizer que a neurolinguística sob esta perspectiva busca compreender como o sujeito faz uso da linguagem, considerando, para tal, as condições histórico-sociais e psico-afetivas nas quais este sujeito está inserido.
A maneira de se avaliar e conduzir os processos terapêuticos é um contínuo processo de descoberta, baseado no movimento 'teoria-dado-teoria' em que se dá ênfase ao chamado dado-achado e às singularidades encontradas nas produções de cada indivíduo, durante os momentos de interlocução e dialogia.
A análise microgenética, segundo Góes (2000), se refere a uma 'forma de construção de dados' a qual exige atenção a detalhes e o recorte de episódios interativos. É um método orientado, portanto, por uma análise qualitativa minuciosa, conferindo importância aos detalhes das ações, às situações interacionais, às relações interpessoais e aos cenários socioculturais. Com base nestas características, podemos dizer que a análise microgenética está orientada por indícios ou pistas de um processo em curso, que nos permite melhor interpretar os episódios dialógicos. Estes são os mesmos princípios do chamado “paradigma indiciário”, de Ginsburg.
A teoria histórico-cultural de Bakhtin também norteia e fundamenta nossa pesquisa de perspectiva enunciativo-discursiva. Torna-se importante pra nós, sobretudo, considerarmos os conceitos de enunciação, enunciados reais, acabamento e sentido. Para Bakhtin (1992), a enunciação é o produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados. Ela não existe fora de um contexto sócio-ideológico e sempre se destina a alguém. Qualquer enunciação propõe uma réplica, uma reação. Poranto, o sentido de um enunciado não está pré-definido no indivíduo, nem na palavra, nem dos interlocutores, mas é construído numa compreensão ativa e responsiva. É o efeito da interação entre o locutor e seu receptor, produzido através de signos linguísticos.  A interação constitui, assim, o veículo principal na produção do sentido. Nesta concepção,  o sentido se torna único, individual, não renovável e expressa a situação histórica no momento dem que se dá a enunciação.
Todo enunciado necessita de um acabamento com a finalidade de expressar a posição do locutor e produzir uma atitude responsiva. Assim, o locutor sempre espera por uma atitude responsiva que irá lhe dizer sobre a compreensão de um  enunciado (BAKHTIN, 1997). Bakhtin ainda define o enunciado como a unidade real da comunicação verbal:

O enunciado não é uma unidade convencional, mas uma unidade real, estritamente delimitada pela alternância dos sujeitos falantes, e que termina por uma transferência da palavra ao outro, por algo como um mundo “dixi” percebido pelo ouvinte, como sinal de que o locutor terminou. (Bakhtin, 1997, p. 293-294).

            Dessa forma, o enunciado deve ser compreendido como qualquer manifestação de comunicação, seja ela oral, gestual ou escrita. Para nossos estudos é de fundamental importância considerarmos os enunciados produzidos pelos sujeitos, que ao contrário de sentenças e palavras, dá conta das patologias (como as afasias) por trazer todos os elementos necessários para compreendermos o funcionamento da linguagem nesses casos.
O diálogo, por sua vez, é tomado como a forma clássica da comunicação verbal, na qual se torna mais evidente a alternância dos sujeitos falantes. A situação dialógica, ou interlocução é, portanto, constitutiva dos enunciados nas interações verbais.
            Condizente com a proposta da neurolinguística enunciativo-discursiva, a concepção de cérebro que se toma é baseada nas teorias de Luria (1973/1981). O cérebro é visto como um Sistema Funcional Complexo e, portanto, a linguagem e demais funções cognitivas não estão ‘localizadas’ em áreas circunscritas, mas ocorrem pela participação de grupos de estruturas cerebrais que operam em conjunto. Dessa maneira, lesões em uma determinada área do cérebro podem levar à desorganização do  sistema funcional como um todo.


BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 6. ed. São Paulo: Hucitec, 1992.
BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. Trad. Maria Ermantina Galvão G. Pereira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
BRAIT, B. (Org) Bakhtin: Conceitos-Chave. Ed. Contexto, 2010
COUDRY, M.I. Linguagem e Afasia: uma abordagem discursiva da Neurolingüística. In: Cadernos de Estudos Lingüísticos. Campinas: 2002.(42):99-129, Jan/Jun.
CYTOWIC, R. E, The Neurological Side of Neuropsychology. Cambridge, MA: Bradford. The MIT Press. 1996
PERELLÓ, J; VERGÉ-PONCE J. “Disartrias”. In: PERELLÓ, J. Transtornos da fala. Rio de Janeiro. Medsi; 1995. p: 1-107.

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