segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Admirável Corpo Erótico Onde Estética e Ética são Mercadorias de Prazo Vencido



José Kuiava
Juslaine de Fátima Abreu Nogueira

Brincando de letras com palavras.

Estética e ética são duas palavras irmãs inseparáveis. Uma não sobrevive sem a outra. Não se sabe ao certo qual delas nasceu primeiro. Quer dizer, foi inventada primeiro. Até hoje ainda há controvérsias sobre a verdadeira e correta ordem das palavras. Embora inseparáveis, vivem em permanentes conflitos, principalmente nos momentos em que a estética quer se impor à ética e vive versa. Mas isso são problemas delas, isto é,  de quem lida com elas. Saber se ética vem antes de estética, ou se estética antecede a ética e quais são as relações entre as duas é coisa da gênese da história destas palavras. Assunto para filósofos, críticos da estética e da ética. A invenção, o nascimento, o desenvolvimento dos vários - convergentes e divergentes, sentidos significativos de ética e estética é assunto para a história. Não é assunto simples de ser examinado. Até porque ética e estética são daquelas palavras que todo mundo sabe o que são, mas excepcionalmente só alguns sabem explicar os seus verdadeiros e profundos sentidos para a vida em seus diversos momentos da história.
Comecemos pelo mais fácil. Falar e escrever as palavras estética e ética é simples. Depois que alguém inventou as letras – estes sinais que a gente desenha manualmente ou digita mecanicamente, e atribuiu a cada uma delas signos diferentes de modo que  um conjunto de letras forma palavras prenhes de sentidos com significados determinados, em cada língua e em cada tempo da história, ficou fácil escrever ética e estética. Muito engraçado, para escrever e falar ética é só subtrair as três primeiras letras de estética. E para escrever estética é só devolver as três letras roubadas à ética. Pronto. Estão aí ética e estética.
O inventor grego (sempre os gregos!) disse que a palavra “aisthésis” tem o sentido de “percepção”, “sensação”. Daí vieram os filósofos, naturalmente gregos - Platão, Aristóteles e outros, e disseram que estética deveria ocupar-se do estudo da natureza do belo e dos fundamentos da arte. E mais: impuseram de imediato que a estética deveria fundir-se com a ética e com a lógica. Isto quer dizer que estética precisa conter as categoriais do belo, do bom e do verdadeiro. Assim, foi inventada a palavra ethos, com o sentido de “modo de ser”, “Caráter”, “comportamento”. Aí novamente vieram os filósofos – os gregos de sempre, e disseram que ética deveria expressar e indicar/orientar o melhor modo de viver no cotidiano e na sociedade, claro, com a garantia da verdade, que seria atingida pela “lógica”, do mesmo grego “λоуτκή” ou logos, que significa “palavra”, “ideia”, “argumento”. Daí, a verdade lógica.
A partir de sua invenção, a estética, a ética e a lógica deram motivos para muitos e diversos modos de pensar e escrever. Já um pouco mais adiante da história,  com a presença dominante do cristianismo, a  igreja impôs mais um ingrediente muito polêmico a estas palavras: a moral. Determinou que a estética, a ética e a lógica deveriam seguir e obedecer rigorosamente os mandamentos, as normas, os costumes religiosos, sociais e culturais hierarquicamente estabelecidos. Desta vez a palavra vem do latim: mos, mores, significa  “costumes”.
Em todos os períodos da história sempre houve os que se insurgiram a estes valores estéticos, éticos e morais, em atos de “transgrediência” aos valores impostos, particularmente na forma das artes, nas festas populares, na filosofia e mais tarde na ciência e na técnica. Nas artes, a “transgrediência” expressa-se na literatura nas formas da tragédia, da comédia, da sátira, da ironia, em oposição à lírica e a épica. Na pintura, a estética se expressa nos grandes murais e nas abóbodas das igrejas, catedrais, basílicas, mosteiros, com figuras humanas,  divinas, angelicais, prevalecendo as imagens, as formas, os gestos corpóreos para o sublime, o sagrado, o celestial. O corpo valia nada, a alma valia tudo.  Corpo era temporal. A alma, eterna. O corpo, via de regra, deveria estar encoberto. Nada de pescoços, seios, quadris e pernas à mostra. A estética estava à serviço da moral. O corpo – objeto de pecado, deveria ser encoberto. Escondido. Nada de exposição de protuberâncias genitais. A estética estava na quantidade, suntuosidade e na forma das vestimentas. O sublime prevalecia sobre o belo. O erótico, nem pensar. Só em casos de “transgrediências” por parte de artistas – pintores, escultores, músicos, escritores, teatrólogos. O sentimento do sublime, do elevado, chega ao auge na idade medieva. Em oposição a estes  sentimentos de estética e ética elevados das camadas eruditas, nobres, sagradas da sociedade, expressa-se a estética  do “baixo corporal” na forma de festas, danças, comemorações populares, particularmente no carnaval. Onde a estética e o belo se misturam com o prazer – não o elevado, sublime, mas o prazer corporal. Se o espírito é forte, a carne é mais forte ainda. Predominam as festas coloridas, fantasiadas, alegóricas (entroniza-se e coroa-se o rei na abertura do carnaval para destroná-lo ao término do carnaval), com máscaras e pinturas desde personagens mitológicas/celestiais até personagens infernais. Eis a estética da cultura popular.

Estética e ética na modernidade

Outros são os sentimentos e os valores de estética e ética com o advento da modernidade. Agora nasce o comerciante e sua mercadoria. De súbito, a arte põe-se a serviço do comerciante. Quer dizer, a arte transforma-se em mercadorias e como tal é um valor-de-uso. Outros são os valores estéticos. A arte torna-se mercadoria de luxo nos novos e modernos espaços: vitrines de vidro, galerias, salões de exposição, apartamentos de luxo, onde a estética vira valor de especulação – uma questão de decoração de interiores de luxo e um novo visual, nova imagem do corpo. Eis que cai do céu, como milagre, a moda. Prato cheio para profissionais de moda. Com a moda surge o esteticista, o estilista, o decorador, o urbanista, o arquiteto, o tipógrafo, o “designer”. A arte torna-se rival da técnica. Perde o valor do estético natural. Mais recentemente, o médico cirurgião – estetecista-plástico, que domina o campo da ciência médica e opera com maestria e desenvoltura os equipamentos eletrônicos, está se saindo de forma excelente. As cirurgias plásticas de encurtar o nariz, fechar as orelhas, extrair ou avolumar/erguer/enrijecer os seios, avolumar as nádegas, lipo da barriga, culotes, cintura, botox, mudança de sexo, entre outras estéticas corpóreas. Assim, como há a ética médica, bioética há também a cirurgia estética: cirurgia de redesignação de gênero, cirurgia de reconstrução sexual, cirurgia de reconstrução genital, cirurgia de confirmação de gênero e cirurgia de afirmação de sexo. Ou, em termos mais elevados, “genitoplastia de feminilização” e “genitoplastia de masculinização”. Bem, o que mais?
Quais seriam as categoriais fundamentais, os valores fundamentais de estética nestes novos tempos, tempos da modernidade? Como se manifestam os valores estéticos do corpo em seu sentido de beleza? Qual é o tempo de validade dos valores estéticos no inconsciente coletivo do cotidiano  nestes tempos da modernidade? Quais seriam os limites da estética? Onde inicia o valor estético do objeto, do movimento, o ato de criação estética e onde termina? Perguntando de outro modo: o que é estético e o que não é estético no ato de falar, ouvir, fazer, escrever...? Como o valor estético corporal e o erótico se fundem nas mercadorias do cotidiano?  Ah, esqueci do ético. Ainda há lugar para o ético neste corpo esteticamente mutilado?
Não é intenção aqui discorrer sobre a estética em linguagem filosófica, em suas categorias abstratas e seus conceitos  formalmente produzidos. No lugar das teorias e dos conceitos gerais de estético, compor e estampar um mosaico de imagens de estético que compõe e alimenta os sonhos e o imaginário do inconsciente das massas populares.
A estética, o estilo, o estilista, o esteticista, o “designer”, o decorador, o cirurgião se manifestam e se confundem com a moda. Esta, a moda, é agoral, que é o mesmo de atemporal. Ao mesmo tempo é de tempo todo e de tempo algum. A estética da moda não antecede às vésperas da moda e não vai além do instante vivido. Quer dizer, não vai além do consumo das mercadorias da moda pelo inconsciente coletivo. Morre no instante em que a moda seguinte é lançada nas mercadorias de consumo. E a moda que a antecede, se esvai.
A moda é o instante do acontecimento vivido, razão pela qual ela (a moda) é expressão do sonho coletivo  inconsciente, pois os indivíduos que a vivenciam ainda não estão conscientes de si mesmos, obcecados pela imagem da beleza imposta pelas mercadorias, no momento agoral da estética da moda. No fim da moda, quer dizer, no ato do consumo da mercadoria, está o grande tesouro: a felicidade. Que morre logo em seguida, no “baú da infelicidade”.
Escreveu com exatidão e consistência Olgária Chain Féres Matos ao analisar o pensamento de Walter Benjamin:
Walter Benjamin reconhece, nos monumentos da burguesia, ruínas, antes e independentemente de seu desmoronamento,  pela maldição da modernidade, maldição que consiste na incapacidade paradoxal de criar o novo. Sua necessidade compulsiva de produzir novidades – que caracteriza o modo de produção capitalista – é bem o contrário da verdadeira inovação, como o atestam as modas, sempre recorrentes, pois o novo não passa de uma série de variantes de aquisições antigas: `É o novo sempre velho e o velho sempre novo'. Com efeito, a moda é a figuração moderna da repetição.


De fato, a moda é a protagonista da “civilização da imagem e do consumo”. Nós somos apenas homens e mulheres na multidão a procura da felicidade. Seria isso? Mas ela  sempre nos foge por entre os dedos no instante que acabamos de comprar a moda (mercadorias) e recebemos os boletos bancários.
Este sonho está intimamente ligado, e pelas mesmas razões da moda, à estética do corpo: o vestuário, o calçado, os adereços, os enfeites, as bijuterias, o corpo quase nu, erótico  sensualmente vestido/despido, o rosto maquiado, lábios rosados/avermelhados/brilhantes, olhos com sombras e silhuetas bem demarcados, faces rosadas, cabelos sem nenhuma forma e cor naturais (aplique, interlace...), seios erguidos, firmes, generosamente avolumados por silicone, umbigo e região pélvica exibidos totalmente à mostra dos curiosos e admiradores de corpos nus, nádegas volumosas e empinadas com “cofrinho” discretamente à vista, calças apertadas e coladas às nádegas e pernas com o perfil do baixo corporal perfeitamente desenhado, com destaque às protuberâncias de potencial eruptivo. Assim, os valores estéticos – o belo e o erótico, ficam estampados no corpo inteiro, da cabeça aos pés, complementados pelo movimento cadenciado, em harmonia com o modelo, o estilo, as costuras, as cores  das vestes e do calçado. É o caso em que a estética, a ética e o erótico se fundem na totalidade  do corpo.
O mundo de hoje é o grande palco dos desfiles de moda. Ao mesmo tempo em que os estilistas e os empresários da moda lançam os novos-sempre-velhos-estilos-modelos nos salões de luxo, estas mesmas imagens de corpos de mulheres magérrimas, desfilando em palcos suntuosos, o mundo vê este espetáculo ao vivo – um delírio.
Pergunta final: como mirar este “admirável corpo novo”, perdão, este “Admirável  Mundo Novo” (Aldous Huxley)  com um olhar de quem escreveu “Estética da Criação Verbal”? E para provocar os leitores, estudiosos e amantes do pensamento de Bakhtin:

A contemplação estética e o ato ético não podem abstrair a singularidade concreta do lugar que o sujeito desse ato e da contemplação artística ocupa na existência (Estética da Criação Verbal).

Um comentário:

  1. Na linha 9 do primeiro parágrafo onde se lê: convergente e dirigente, leia-se convergente e divergente.
    José Kuiava

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