domingo, 19 de setembro de 2010

A RELAÇÃO DE ALTERIDADE NA PERSPECTIVA DA SOCIOEDUCAÇÃO[1]


Ivan Almeida Rozário Júnior 2

Resumo
Este artigo visa fomentar uma reflexão sobre a relação de alteridade que se pretende construir em um processo de intervenção socioeducativa junto aos adolescentes que cumprem medida socioeducativa de internação. Em princípio, apresentamos as concepções bakhtinianas de dialogismo, exotopia e alteridade. À luz dos estudos linguísticos, sob a ótica de Bakhtin, propusemos algumas questões que nos permitiram construir ilações acerca da construção da subjetividade, buscando compreender de que modo a relação de alteridade pode se realizar e contribuir significativamente no processo socioeducativo.

Palavras-chave: Socioeducação; Adolescente em conflito com a lei;
                            Subjetividade; Alteridade.

Abstract
This article aims to encourage reflection on the relation of otherness that it intends to build in a process of socio-educational intervention with adolescents who abide by social hospitalization. In principle, we present the concepts bakhtinian dialogism, exotopia and otherness. In light of linguistic studies, from the perspective of Bakhtin, we proposed some questions which allowed us to construct inferences about the construction of subjectivity, trying to understand how the relation of otherness can deliver and contribute significantly in the childcare process.
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Keywords: Social education; Adolescents in conflict with the law, Subjectivity,  
                   Otherness.

Considerações iniciais

O texto propõe uma reflexão sobre a relação de alteridade que se pretende construir em um processo de intervenção socioeducativa junto aos adolescentes que cumprem medida socioeducativa de internação. Tomando como ponto de partida as concepções bakhtinianas de que a interação verbal e o dialogismo são princípios da linguagem humana, podemos perceber a importância de se construir uma relação alteritária no que tange à execução da medida socioeducativa de internação.
Tal proposta de reflexão emerge de um projeto de dissertação que tem por finalidade compreender os aspectos sócio-ideológicos que permeiam os enunciados produzidos pelo adolescente em conflito com a lei, durante a sua trajetória socioeducativa de internação e como a construção da subjetividade e a ressignificação são apreendidas a partir do processo dialógico de intervenção.
O adolescente em conflito com a lei, sujeito ao qual se imputa a prática de ato infracional, quando submetido à medida socioeducativa de privação de liberdade, se depara com um outro processo dialógico, fato que corrobora o pressuposto de Bakhtin, qual seja, a linguagem humana é essencialmente dialógica e vivemos “no universo das palavras do outro”. Nessa esteira de pensamentos, partindo da proposta da pesquisa, levantamos algumas questões acerca do processo de intervenção pelo qual passa esse sujeito, no que tange a sua dialogicidade, e de que modo a relação de alteridade poderia constituir-se uma estratégia eficaz para o processo socioeducativo.

Algumas considerações pertinentes

Na busca em compreender os traços da subjetividade construída nos enunciados produzidos por esses sujeitos, ao longo de sua trajetória de internação, partimos da seguinte questão: Como o adolescente em conflito com a lei, sob medida socioeducativa de internação, percebe o outro que tenta educá-lo?
No processo de socioeducação, o adolescente em conflito com a lei está em constante “batalha” com aquele que tenta educá-lo. Eis, então, o desafio em se criar uma atmosfera favorável à ação socioeducativa, que vise preparar a pessoa em formação (adolescentes) para assumir papéis sociais relacionados à vida coletiva, à reprodução das condições de existência (trabalho), ao comportamento justo na vida pública e ao uso adequado e responsável de conhecimentos e habilidades disponíveis no tempo e nos espaços onde a vida dos indivíduos se realiza.
Diante, então, da intervenção socioeducativa, o adolescente em conflito com a lei teria condições de significar-se e ressignificar-se, por meio de uma relação de alteridade, vetor norteador das relações interpessoais. A palavra alteridade possui o significado de se colocar no lugar do outro na relação interpessoal, junto com a consideração, valorização, e dialogando com o outro.
Alteridade, então, denomina a capacidade de conviver com o diferente, de se proporcionar um olhar interior a partir das diferenças. Isto significa que reconheço o outro em mim mesmo, também como sujeito aos mesmos direitos que eu, de iguais direitos para todos, o que, por sua vez, gera deveres e responsabilidades, condição sine qua non para a cidadania plena. Porém, se considerarmos o adolescente em conflito com a lei como subversor das regras sociais, podemos pensar: de que modo esse sujeito ideologiza as instituições nas quais está inserido ou não?
            A presente questão nos remete ao sujeito de Bakhtin que, segundo Brait (1999), “é um sujeito histórico, social, ideológico, mas também corpo. É um sujeito construído na linguagem, construído pelo outro”. O sujeito é produto de relações sociais, e o seu discurso, lugar das coerções sociais. Podemos então dizer que “o discurso não é, pois, a expressão da consciência, mas a consciência é formada pelo conjunto dos discursos interiorizados pelo indivíduo ao longo de sua vida” (FIORIN, 2007).
            Nessa esteira de pensamentos, no discurso do adolescente em conflito com a lei, assim como em quaisquer outros discursos, pode-se reconhecer o cruzamento de vários discursos por meio de um processo dialógico. Além disso, nos espaços atravessados pela dimensão ideológica, processa-se o condicionamento do sujeito à ideologia e ao inconsciente, haja vista que “o sujeito passa a ser concebido como aquele que desempenha diferentes papéis de acordo com as várias posições que ocupa no espaço interdiscursivo” (MUSSALIM, 2004).
            A partir dessas reflexões, propomos outra questão: De que forma o discurso do adolescente em conflito com a lei é impregnado pelas vozes que se cruzam em seu interior? O discurso desse sujeito, a partir do processo de socioeducação, é modulado pelas influências decorrentes de um processo dialógico. É mais concreto entender a subjetividade do sujeito a partir do dialogismo bakhtiniano. O sujeito forma-se a partir da teia de relações que consegue estabelecer entre seu discurso e todos os outros a que tiver acesso. Constata-se então que “a vida humana é por sua própria natureza dialógica”.
           
Dialogismo e Alteridade na Socioeducação

O sujeito em Bakhtin é o da interlocução, pois, para o pensador russo, é no diálogo que o sujeito traduz a sua heterogeneidade, uma vez que o eu só se constrói na alteridade com o outro. É, portanto, o dialogismo o princípio da constituição do sujeito. Sendo assim, numa relação dinâmica entre identidade e alteridade, o sujeito é ele mais a complementação do outro. O centro da relação não está nem no eu nem no tu, mais sim, no espaço discursivo criado entre ambos. O sujeito só se completa na interação com o outro.

“Embora a subjetividade individual se produza em espaços sociais constituídos historicamente, o indivíduo, ao entrar na vida social, vai se transformando em sujeito. É nessa integração que o sujeito atua, pela própria socialização de suas diferenças individuais, constituindo elementos de sentido na organização dos sistemas de relação social, dando lugar a novos processos de subjetividade social, a novas redes de relações sociais, que acabam sendo elementos de transformação no status que o engendrou [...]” (JOST, 2006).

Os contextos de enunciação se diversificam e, em conseqüência disso, muitas vezes, se mantêm tensos, em conflito o tempo todo. Eles são dialeticamente relacionados mediante uma coexistência conflituosa, o que significa que um contexto de fala sempre afeta outro e que o efeito de sentido que um consegue é o cruzamento com muitos outros contextos. Esse é o dialogismo de Bakhtin, um jogo de múltiplas vozes. Conforme o teórico, a língua é vista como o cenário de um jogo de palavras, um território de confronto entre subjetividades, o embate polifônico de diferentes instâncias sociais, a coexistência conflituosa de vozes de diversas situações e contextos sociais. Foucault (1996: 110) afirma que “um enunciado tem sempre margens povoadas de outros enunciados”.
Levando-se em consideração o contexto da socioeducação, fomentamos outro questionamento: Em que relação de alteridade esse sujeito se constitui? E, partindo de uma relação de alteridade, de que maneira o adolescente em conflito com a lei atribui significados diante desse novo processo de construção da subjetividade e ressignificação de valores e princípios?
Na relação de alteridade, constata-se ainda mais que nossas palavras estão imbricadas como a palavra do outro:

Vivo no universo das palavras do outro. E toda a minha vida consiste em conduzir-me nesse universo, em reagir às palavras do outro. [...] A palavra do outro impõe ao homem a tarefa de compreender esta palavra. A palavra do outro deve transformar-se em palavra minha alheia (ou alheia minha). Distância (exotopia) e respeito. O objeto, durante o processo da comunicação dialógica que ele enseja se transforma em sujeito (em outro eu) (BAKHTIN, 1997, pp. 385-386).


Ao considerarmos o processo de interação e a sua dialogicidade, pode-se chegar ao princípio da exotopia que, no dizer de Amorim (2006), “é o desdobramento de olhares a partir de um lugar exterior. Esse lugar exterior permite, conforme Bakhtin, que se veja do sujeito algo que o próprio sujeito nunca pode ver.” Em síntese, aliando-se às palavras de Cristovão Tezza, constata-se que “no universo bakhtiniano nenhuma voz, jamais, fala sozinha.”
Nesta esteira de pensamento, tem-se a noção de acabamento, haja vista que, se é o indivíduo que finaliza, ele dá ao outro uma visão acabada, assim como é o outro que lhe pode dar o acabamento, a ponto de situar-se de seu lugar social, em um processo de reciprocidade. Portanto, a visão que o outro tem do indivíduo nunca será igual à visão que o indivíduo tem de si mesmo. O “eu” abrange o conhecimento interior, a visão do “outro” é baseada em suposições com base no que vê externamente.
No que se refere ao adolescente em conflito com a lei, considerar o processo exotópico de sua relação com o outro, no caso o socioeducador, lhe possibilita resgatar a consciência de si mesmo através do outro:

“O excedente da minha visão contém em germe a forma acabada do outro, cujo desabrochar requer que eu lhe complete o horizonte sem lhe tirar a originalidade. Devo identificar-me com o outro e ver o mundo através de seu sistema de valores, tal como ele o vê; devo colocar-me em seu lugar, e depois, de volta ao meu lugar, completar seu horizonte com tudo o que se descobre do lugar que ocupo, fora dele; devo emoldurá-lo, criar-lhe um ambiente que o acabe, mediante o excedente de minha visão, de meu saber, de meu desejo e de meu sentimento” (BAKHTIN, 1997)

A reflexão, a partir de uma perspectiva bakhtiniana, permite-nos inferir que em uma relação dialógica e alteritária o sujeito, nesse caso o adolescente em conflito com a lei, tende a tornar-se um sujeito responsivo.

Considerações finais

A proposta em refletir a relação de alteridade que se pretende construir no processo de socioeducação vem à tona, nesse momento inicial da pesquisa, ao considerarmos que “o indivíduo não vive fora da alteridade”. É por meio desta que o homem se define,  haja vista que o outro é imprescindível  à sua concepção. A partir de uma relação de alteridade, torna-se mais acessível o entendimento da realidade de cada um desses adolescentes em conflito com a lei, bem como os fatores que os motivaram (e motivam) à prática do ato infracional.
            É incipiente afirmarmos que a relação de alteridade é ponto culminante no processo de intervenção socioeducativa, em  contrapartida, nota-se que essa relação, quando construída por meio da interação humana, favorece um trabalho mais eficiente e efetivo no trato do atendimento ao adolescente em conflito com a lei.
            Conforme Gallina (2007, p. 91),

“é desafiadora a missão de construir coletivamente respostas e soluções criativas e complexas, que possam oferecer aos adolescentes a oportunidade de se desenvolverem como sujeitos de direitos e responsabilidades capazes de se tornarem autônomos e de fazerem suas escolhas de forma reflexiva e madura”.
            Se pensarmos, desde já, na alteridade como contituinte do processo dialógico,  consequentemente, podemos descortinar uma cultura de paz e a promoção da ressocialização do adolescente em conflito com a lei, ainda que seja uma tarefa ousada mas significativa.

Referências

AMORIM, Marília. Cronotopo e Exotopia. In: BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin:
          outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2006.
BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
BARROS, Diana L. Pessoa de. Contribuições de Bakhtin às Teorias do 
          discurso. In: BRAIT, Beth (Org.). BAKHTIN – dialogismo e construção   
          do sentido. 2ª Ed. (revisada). São Paulo. Editora Campinas, 2008.
BRAIT, Beth. Mikhail Bakhtin: o discurso na vida e o discurso na arte. In:
          DIETZSCH, M. J. (Org.) Espaços da linguagem na educação. São Paulo:
          Humanitas, 1999.
BRANDÃO, Helena H. N. Introdução à Análise do Discurso. 2ª Ed. (revisada). 
          São Paulo: Editora Unicamp, 2004.
FIORIN, José Luis. Linguagem e ideologia. 8ª Ed. (revisada e atualizada). São
          Paulo: Ática, 2007.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Trad. Laura Fraga de Almeida     
          Sampaio. São Paulo: Loyola, 1996.
GALLINA, Silvana. A subjetividade e a Política de Atendimento ao Adolescente
          em Conflito com a Lei. In: BASTOS, Ruth; ÂNGELO, Darlene;
          COLNAGO, Vera. (Orgs.). Adolescência, Violência e a Lei. Rio de
          Janeiro: Cia. De Freud, 2007.
JOST, Maria Clara. Por trás da máscara de ferro: as motivações do
         adolescente em conflito com a lei. São Paulo: Edusc, 2006.
MUSSALIN, F. Análise do discurso. In: MUSSALIN, F. & BENTES, A. C.      
          (Orgs.). Introdução à lingüística: domínios e fronteiras. 4ª Ed. São Paulo:
          Cortez, 2004.  


[1]Artigo produzido como requisito avaliativo no Programa Pós-Graduação em Estudos Linguísticos/UFES.
2 Licenciado em Letras: Português/Espanhol, Especialista em Leitura e Produção de Textos, Mestrando 
  em Estudos Lingüísticos/UFES. Endereço eletrônico: ivanrozario@gmail.com.

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