segunda-feira, 20 de setembro de 2010

O retrato: excedente de visão objetivado em enunciado

Lucia Helena Correa Lenzi[1]



As experiências humanas só existem no compartilhamento daquilo que é visto e vivido quando o eu e o outro encontram-se numa interação e depois retornam a si mesmos, com o seu horizonte de visão complementado pelo que foi desvelado do lugar que cada um ocupou nesta interação. Isto considerado, parece possível dizer que dois olhares, ou dois “estares” nunca se fundem e, portanto, nunca conseguirão ver ou partilhar de modo idêntico a mesma coisa ou o mesmo sentimento, posto que estarão sempre em posições distintas. Deste modo, a relação só se constitui e é constituída na condição alteritária, pois o outro só se reconhece como tal, e é assim reconhecido, se tomado pela presença de um outro que mutuamente também o reconhece.
Com este conceito de exotopia, Bakhtin (2003) busca explicitar a complementariedade da relação eu/outro, pois segundo ele, “eu devo entrar em empatia com esse outro indivíduo, ver axiologicamente o mundo de dentro dele tal qual ele vê, colocar-me no lugar dele e, depois de ter retornado ao meu lugar, contemplar o horizonte dele com o excedente de visão que desse lugar se descortina fora dele” (BAKHTIN, 2003, p. 23). É um outro que do seu lugar dá ao eu o acabamento, na mesma proporção em que o eu só recebe o que falta ao seu horizonte de visão pelo outro, a partir das possíveis alianças entre presenças/ausências e vozes alheias. Nas palavras do autor,

em qualquer situação ou proximidade que esse outro que contemplo possa estar em relação a mim, sempre verei e saberei algo que ele, da sua posição fora e diante de mim, não pode ver [...] toda uma série de objetos e relações que, em função dessa ou daquela relação de reciprocidade entre nós, são acessíveis a mim e inacessíveis a ele (BAKHTIN, 2003, p. 21). 

Conforme Amorim (2006), Bakhtin serve-se de um exemplo para conceitualmente explicitar a exotopia: ação de um pintor ao retratar alguém que será o retratado. Por um lado, o efeito do encontro destas duas posições, retratado e retratante, é o quadro que traz em si a expressão deste duplo movimento onde temos necessariamente uma posição exotópica do retratante. O esforço criativo do retratante passa por dois momentos: o primeiro se constitui pelo propósito de se colocar no lugar do outro tentando se apossar do modo como o seu retratado vê e se coloca no mundo, ou seja, o seu ponto de vista axiológico de mundo. Já, no segundo momento, aquele que retrata retoma seu lugar, não no sentido da posição física, mas sim no sentido da interação, distanciando-se do retratado para que se processe o necessário estranhamento que permite diferenciar seus pontos de vista e com isto fazer as devidas escolhas de recorte, enquadramento e foco do que ou de quem quer retratar.
Esse duplo movimento – colocar-se no lugar do outro e, por conseguinte agregar ao já visto àquilo que o retratante acha que o outro vê – é que garante o excedente de visão ou a exotopia, dando uma forma estética de acabamento ao outro. Já aquele que foi retratado “vive cada instante de sua vida como inacabado, como devir incessante. Seu olhar está voltado para um horizonte sem fim. O sentido da vida para aquele que vive é o próprio viver” (AMORIM, 2006, p. 96). Essa diferença no que se refere ao lugar de cada um – retratado e retratante – dá-lhes momentos diferentes de seu “estar no mundo”: enquanto um vive a sua experiência de ali estar, o outro (o retratante) busca com o retrato expressar o sentido que atribuiu e definiu provisoriamente ao outro, sentido objetivado no resultado imagético externo produzido por ele. Assim, o retratante dá ao retratado um acabamento e fixa este acabamento no retrato que produz. O retratado, obviamente, continuará a viver sua vida, e por isso a “fixidez” que lhe dá o retratante tem a provisoriedade dos sentidos construídos nesta relação que se estabelece no retrato, mas não no retratado.
Bakhtin, ao discutir a imagem externa, refere-se a ela “como conjunto de todos os elementos expressivos e falantes do corpo humano” (2003, p. 25). Este exemplo nos permite entender a expressividade humana para além das possibilidades que a oralidade e o registro escrito proporcionam. Nesta direção, as fotografias como enunciados exotópicos carregam e exprimem sentidos daquele que, por alguns momentos, torna-se fotógrafo e, com a câmera na mão, do seu lugar, faz os registros do seu enquadramento, considerando que “o ato de acionar o botão de uma máquina fotográfica é o único momento em que o tempo interno está de acordo com o tempo externo” (ANDRADE, 1998, p. 50). O retratante, num momento posterior, com seu próprio excedente de visão e ao contemplar autoralmente a imagem por ele obtida, pode estranhar e ver algo que ele mesmo não vira quando do congelamento momentâneo de seu enquadramento. Pode, depois, explicitar isto para ele mesmo e para o outro ao tomar o que foi registrado como tema do discurso.
Bakhtin (2003) estabelece uma diferenciação entre a fotografia e a pintura. Ao referir-se à fotografia, diz que a mesma

só oferece material para cotejo, e nela não vemos a nós mesmos mas tão-somente o nosso reflexo sem autor; é verdade que este reflexo já não reproduz a expressão do outro fictício, ou seja, é mais puro que o reflexo no espelho, no entanto é percebido de forma aleatória, artificial, e não expressa nossa diretriz volitivo-emocional no acontecimento da existência – esse material bruto, que de modo algum pode ser incluído na unidade da minha experiência de vida por não haver princípios para sua inclusão (BAKHTIN, 2003, p. 32).

Com esta discussão, Bakhtin (2003) parece não considerar a autoria do fotógrafo, ou o sujeito da produção da imagem, como se a presença que origina a fotografia fosse devida, somente, ao “aparelho fotográfico” (FLUSSER, 2002, p.19), considerando-o capaz de reproduzir a realidade tal qual ela é. Esta diferenciação marcada pela invisibilidade daquele que opera o aparelho foi uma forte discussão do século XIX, momento em que se reconhecia a fotografia como um espelho do real, “como a imitação mais perfeita da realidade, [...] sem que as mãos do artista intervenham diretamente” (DUBOIS 2001, p.27). Os embates desta época eram da ordem da discussão de quem, - se pintores ou fotógrafos -, melhor captava a realidade. Este debate é retomado por Argan que assim se posiciona:

A hipótese de que a fotografia reproduz a realidade como ela é e a pintura a reproduz como se a vê é insustentável [...] Também é insustentável que a objetiva seja um olho imparcial, e o olho humano um olho influenciado pelos sentimentos ou gostos da pessoa; o fotógrafo também manifesta suas inclinações estéticas e psicológicas na escolha dos temas, na disposição e iluminação dos objetos, nos enquadramentos, no enfoque (ARGAN, 2006, p.79).

Escrevendo na primeira metade do século XX, Bakhtin se deixa influenciar pelo debate do século XIX entre arte e tecnologia. Como a fotografia resulta de uma atividade técnica na qual o instrumento técnico impõe restrições, o debate de então não a considerava como uma manifestação artística. Era como se o olho que enquadra fosse o da própria máquina, e não do sujeito que a manobra, estabelecendo os recortes que deseja. Aqui, é importante repensar o ponto de vista bakhtiniano relativo à questão, não para dele se afastar, mas para aplicar ao processo de produção fotográfica outros princípios de sua obra, especialmente as noções de excedente de visão e de acabamento proporcionado pelo ato de fotografar e no qual o sujeito que fotografa se expõe como produtor. Ou seja, contrariamente ao que escreveu à época o autor, certamente em consequência, como por exemplo, do baixo nível técnico disponível nas câmaras, há que se reconhecer a presença da diretriz volitivo-emocional do fotógrafo na fotografia e seu exercício como acontecimento estético da existência.
Assim, é possível estender para a fotografia o que Bakhtin atribui somente à pintura, pois, tanto na fotografia quanto na pintura, o artista se faz presente como autor. De modo que, a partir destas considerações, é possível ver referendada tanto a fotografia quanto a pintura nas palavras de Bakhtin (2003, p. 32) ao nos dizer que é “o meu retrato executado por um artista que tem autoridade para mim: aí temos realmente uma janela para o mundo [...] pelos olhos de outro indivíduo puro e integral – o artista”.
Reconhece-se hoje que, para produzir uma imagem fotográfica, é necessário estabelecer um foco, fazer escolha e isso só acontece através de alguém que opera e recorta axiologicamente a cena pelo seu gesto de fotografar, pois “a manipulação do aparelho é gesto técnico [e] isto é, gesto que articula conceitos. O aparelho obriga o fotógrafo a transcodificar sua intenção em conceitos, antes de poder transcodificá-los em imagens” (FLUSSER, 2002, p.31). O processo de tomada fotográfica, registra o recorte que o fotógrafo faz não apenas do ponto de vista do que o fotógrafo vê, mas antes como ele vê/significa o que registra. A interpretação do registro só se torna possível considerando-se a autoria, mesmo que tácita, compartilhada, entre o fotógrafo e aquele ou aquilo que é fotografado, sendo “por meio dessas interpretações, [que] um mundo de sentidos é criado por descontinuidades que apontam para o conteúdo da imagem e para os conceitos fundamentais que organizam a visão de mundo e o ethos do grupo estudado” (BITTENCOURT, 1998, p. 206).
Samain (1998, p. 11), ao fazer a apresentação de O Fotográfico, reconhece a fotografia não como um objeto que aprisiona bidimensionalmente o enquadramento daquele que fotografou, mas sim “como uma maneira de ver e pensar”, contemplando desse modo as possibilidades de interpretação e interação também daquele que a aprecia, que lhe anima, enfim que lhe confere significação com os sujeitos que a produzem. Dubois (2001, p. 15) confirma  esta afirmação ao dizer que “com a fotografia, não nos é mais possível pensar a imagem fora do ato que a faz ser”, imprimindo nela a condição de sua existência não na sua condição técnica, mas sim pelo olhar singularmente gestualizado daquele que através da ação da luz, fixa a escolha feita.
Nesse sentido e considerando o pensamento bakhtiniano, podemos dizer que cada foto é um enunciado, não em sua condição de “reflexo sem autor” (BAKHTIN, 2003, p. 32), pois o deslocamento do foco sobre o mesmo objeto produz um novo enunciado sobre o objeto, sem que o enunciado anterior tenha sido apagado mas sim refratado e legitimado pelo outro que lhe dá sentido.
Desse modo, o fotógrafo, ao buscar o melhor ponto de vista para fazer o recorte que interessa à sua composição, ou ao seu novo enunciado, coloca-se na constância desse lugar exterior, buscando registrar a externalidade do fotografado, referenciado pelos valores e vozes que compõem a sua própria visão excedente. Portanto, num enunciado fotográfico estão presentes necessariamente aquele que retrata e aquele que é retratado, ambos imersos reciprocamente numa relação produtora de sentidos que se estabelece pela trama significativa constituída entre as experiências vividas. Ao deflagrar o momento da foto, a posição do fotógrafo é a de quem olha de fora, ou seja, exotopicamente, tendo como seu maior acervo sua visão excedente.
Nesta perspectiva e no lugar de pesquisador, interpretar uma fotografia é tornar dizível uma totalização provisória, possibilitada pela situação de estranhamento com o olhar exotopicamente distanciado. É revelar ao outro algo que somente o pesquisador pode ver do lugar que ocupa e de onde, povoado axiologicamente, gera com seu excedente de visão um produto que converte o objeto físico “o qual, sem deixar de fazer parte da realidade material, passa a refletir e a refratar, numa certa medida, uma outra realidade.” (BAKHTIN, 2004 p.31). Deste modo, rompe com o que está posto, produzindo novos e incompletos sentidos, aproximando-se de Manoel de Barros (2004, p. 13) quando diz que “bom é corromper o silêncio das palavras”, inaugurando e desalojando discursividades. Este é o retrato, possibilitado pelo excedente de visão, pois quando

contemplo no todo um homem situado fora e diante de mim, nossos horizontes concretos efetivamente vivenciáveis não coincidem. [...] Esse excedente da minha visão, do meu conhecimento, da minha posse – excedente sempre presente em face de qualquer outro indivíduo – é condicionado pela singularidade e pela insubstitubilidade do meu lugar no mundo (BAKHTIN 2003, p.21).

          Portanto o outro nunca poderá estar no meu lugar, ou tão pouco será a ele possível acessar o mundo de posse do meu repertório, ao eu não é facultada a condição de estar no lugar do outro ou de se converter no outro, sendo que “quando nos olhamos, dois diferentes mundos se refletem na pupila dos nossos olhos” (BAKHTIN, 2003, p.21). Embasada na compreensão bakhtiniana de que conhecimento humano e sujeitos são dialogicamente constituídos na e pela linguagem, amplio esta compreensão para a produção das imagens fotográficas que aqui são tomadas como uma construção social e histórica que expressam, nos elementos que bidimensionalmente a constituem, o horizonte social de quem a produz.
Referendada por esta perspectiva, é possível dizer que, mesmo que a câmera fotográfica possa registrar mecanicamente a sensibilidade e as escolhas das situações a serem retratadas, estas são fundamentalmente eleitas num dado horizonte apreciativo que constitui e é constituído pelo portador da câmera, “assim, a fotografia é um produto do desenvolvimento humano, e não pode ser dissociado da sua significação e projeto histórico” (BARBOSA, 2006, p. 17). Deste modo, o ato fotográfico (DUBOIS, 2001) não é uma ação neutra, mas antes porta em si modos de ver particularizados pelo contexto a que pertence o fotógrafo, bem como, pelo contexto em que a foto foi constituída. De modo que tanto o enunciado verbal quanto o enunciado fotográfico, constituídos e concebidos como signo, têm sua produção e significação marcada pela interação dos sujeitos historicamente situados.
É possível entender a dimensão sígnica da fotografia, quando referendada na perspectiva bakhtiniana, não como um sistema químico-lógico-formal sustentado em abstrações, mas sim em sua concretude capaz de exprimir, no trabalho individual de cada um dos produtores deste discurso visual, a manifestação humana ali refletida e refratada.
Parafraseando Manoel de Barros (2007, p. 61), ao dizer que a “palavra que eu uso me inclui nela”, é possível dizer que a fotografia que eu faço, me inclui nela como sujeito falante. Isto permite entender a fotografia como material sígnico, ou ainda, como enunciado sígnico, cujo significado está sempre à espera de alguém que venha lhe refazer o brilho instantâneo de um novo sentido outorgado por um intérprete que lhe tira momentaneamente da posição de transparência, devolvendo-lhe a opacidade necessária para que venha a ter um significado singular.
REFERENCIAS
AMORIM, M. Cronotopo e exotopia. IN: BRAIT, Beth (Org). Bakhtin: outros conceitos-chaves. São Paulo: Contexto, 2006.

ANDRADE, M. R. de Oliveira. A formação da Consciência Política dos Jovens no Contexto dos Assentamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra. Tese (Doutorado Ciências Sociais Aplicadas à Educação) Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1998.

ARGAN, G.C. Arte moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

________. (V. N. Volochinov). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 11ª ed. São Paulo: Hucitec, 2004.

BARBOSA, C. A. S. A fotografia a serviço de Clio: uma interpretação da história visual da revolução Mexicana. São Paulo: Editora UNESP, 2006.

BARROS, M. Retrato do artista quando coisa. São Paulo: Record, 2004.

_______. O livro das Ignorãnças. São Paulo: Record, 2007.

BITTENCOURT, L.A. Algumas considerações sobre o uso da imagem fotográfica na pesquisa antropológica. In: FELDMAN-BIANCO, Bela & MOREIRA LEITE, M (Orgs.). Desafios da imagem: Fotografia, iconografia e vídeo nas ciências sociais. Campinas, SP: Papiros, 1998.
DUBOIS, F. O ato fotográfico e outros ensaios. Campinas, SP: Papirus, 2001.

FLUSSER, V. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.

SAMAIN, E. O fotográfico. São Paulo: Hucitec, 1998.








[1] Professora UFSC/CED/CA luciahelenacl@gmail.com .  Este texto é parte da minha tese intitulada “Eu não desisti!”: os sentidos da escolarização retratados por estudantes adultos do Campo, defendida em julho de 2010 pelo Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC.

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