domingo, 12 de setembro de 2010

O ético e o estético: Pensando a crítica literária segundo a filosofia do ato


Francisco Ewerton Almeida dos Santos

Ao pensar em escrever um texto para este evento, planejava analisar uma determinada obra literária, a qual eu pesquiso no programa de pós-graduação de que participo, segundo alguns conceitos bakhtinianos, sobretudo, o dialogismo e a carnavalização. Contudo, foi o próprio Bakhtin quem me fez mudar de ideia, auxiliado pelo inquietante texto de Marilia Amorim, “Para uma filosofia do ato: ‘válido e inserido no contexto’”, presente no livro Bakhtin: Dialogismo e Polifonia, organizado por Beth Brait. Lendo acerca dos pressupostos apresentados por Bakhtin em seu livro Para uma filosofia do ato, passei a, em vez de procurar analisar um texto literário segundo uma determinada teoria, refletir acerca do próprio ato crítico, visto ser essa a principal inquietação proposta pelo autor russo em sua obra citada, levar-nos a refletir sobre nossos pensamentos-atos de forma ética. Vejamos, refletir eticamente sobre a literatura e sua respectiva crítica: de fato, não está muito em voga na academia, ainda mais em tempos tecnicistas, em que os números valem mais que palavras, a quantidade pesa mais que a qualidade.
Evitando digressões, passemos a alguns conceitos básicos que nos levarão a nossos questionamentos. Precisamos distinguir primeiramente dois termos chave nesta obra de Bakhtin: istina e pravda. Ambos estão relacionados à verdade, mas trata-se de diferentes acepções desta palavra. Instina refere-se à verdade universal, a um universo de possibilidades, à virtualidade do conteúdo do pensamento. Pravda é verdade singular, o ato de pensar que transforma teoria em ética. A verdade da pravda adquire validade dentro do contexto em que se pensa e da posição a partir da qual se pensa. Nesse sentido, apenas pravda é ato, e ato é pensamento e criação. Criação teórica e criação artística como unidade da cultura. Ato é diferente de ação. A ação pode ser um comportamento qualquer, pode ser impensado, mecânico. Pode ser uma impostura, parafraseando Marilia Amorim, o sujeito pode não se responsabilizar e não assinar sua ação. O ato é responsável e assinado: “o sujeito que pensa um pensamento assume que pensa face ao outro, o que quer dizer que ele responde por isso” (AMORIM, 2009, p. 22). Assim, o ato é um gesto ético.
Bakhtin/Amorim nos dizem ainda que o pensamento-ato responde a uma necessidade. Diferente da necessidade lógica a que responde o conteúdo do pensamento, o ato de pensar responde a uma necessidade ética. O termo utilizado por Bakhtin para especificar essa modalidade de necessidade é nuditel’nost’, um termo inusitado que requereu um neologismo para que pudesse ser traduzido. Assim, na tradução para o francês, foi utilizado o termo nécessitance, e, na inexistência de uma tradução deste termo para o português, Marilia Amorim tomou emprestado o termo francês, chamando-o (ao menos, temporariamente) necessitância. A necessitância é uma obrigação, um constragimento, um dever, mas não forçado, visto partir da interioridade do sujeito. É aquilo que diz que devo pensar um pensamento, é aquilo que me mostra a impossibilidade de não pensá-lo, tendo em vista o lugar que ocupo na vida real concreta, dentro de um determinado contexto. Ante um olhar apressado, isto pode parecer a volta do velho determinismo naturalista. Mas não se engane, não o é. Vai muito além disto, pois a necessitância fala, antes de tudo, da e para a singularidade do sujeito.
Para melhor compreendermos, cabe fazer a distinção entre o ser e o dever do pensamento. Deixo-vos com as esclarecedoras palavras de Marilia Amorim:

O ser do pensamento é dado pelo seu conteúdo e obedece ao princípio de identidade: revela algo que é uno, idêntico a si mesmo e que é indiferente às singularidades dos sujeitos. Mas o ser universal e idêntico a si mesmo que revela a teoria é o ser possível. Já o dever do pensamento é a adesão irrevogável do sujeito singular que promove assim sua participação no ser. O sujeito singular que pensa um pensamento participa do ser universal e idêntico completando-o e atualizando-o exatamente com aquilo que não é idêntico nem repetível: o ser real no acontecimento único do ato de pensar. (AMORIM, 2009, p. 23)

Dessa forma, a “verdade universal” independe do sujeito a pensar, no entanto, um pensamento que não se pensa não é vivo, não é real. O conhecimento real precisa ser reconhecido e assinado. O sujeito, ao reconhecer a validade e um pensamento, imprime sua marca, sua singularidade, sua participação no ser. Assinatura, nesse sentido, pode ser vista de três formas: aquilo que constitui o pensamento como ato e lhe confere validade; é também uma forma de marcar sua alteridade, assumir um pensamento diante do outro, confrontar-se com o outro; e a passagem do sujeito por um dado espaço-tempo: ser real e concreto que se apropria de seu contexto, assumindo-o em ato.
O ser do pensamento é significação, conteúdo estável; a assinatura é que confere sentido a ideia, valorando-a dentro de um contexto.
A produção estética, ou, mais especificamente, literária, é, nesse viés de pensamento, pravda, ato de criação. O criar pressupõe um conhecimento cultural estabelecido, uma infinidade de possibilidades de atualização do que é estético (literário) em uma consciência singular, uma estética singular, uma poética própria que instaura uma temporalidade própria, pois

na medida em que crio esteticamente, ao mesmo tempo reconheço de maneira responsável o valor do que é estético. [...] É por essa via que uma consciência viva se torna consciência cultural, e que uma consciência cultural se encarna numa consciência viva. (BAKHTIN apud AMORIM, 2009, p. 32)

Em outras palavras, a cultura, que, a priori, seria indiferente ao sujeito, torna-se necessária para ele, e, ao mesmo tempo, precisa dele para não ser algo abstrato e inerte, para renovar-se sempre e atualizar suas possibilidades. Ou, parafraseando Marilia Amorim, o reprodutível da cultura encontra o irreprodutível de uma existência singular. Assim, a arte, e, mais especificamente, a literatura, necessita tanto do conhecimento do cultural estabelecido, aquilo que independe dos sujeitos, os procedimentos canônicos e infinitamente reproduzidos, as regras e cerceamentos do que é tido como “de prestígio”, quanto do rompimento de todas essas regras, da reinvenção dessa linguagem, da desleitura e desconstrução da sua tradição para manter-se viva e pulsante. A arte (literária) necessita da sua própria subversão e recriação. Ela se ancora na tradição para rompê-la. Ela é auto-remissiva e auto-interpretante — “tradição da ruptura”: já o disse Octávio Paz.
Dessa forma a criação literária é por si só, um ato crítico. Ela necessariamente critica (e renova) a tradição e a si mesma. Istinapravda. Mas e a crítica literária que outrora encontrava nos jornais seu lugar privilegiado e que hoje é tão praticada nas academias, nas instituições de ensino superior, nos programas de pós-graduação financiados por agências de fomento à pesquisa? Seria ela também pravda, criação, pensamento-ato?
Se respondemos, sim, assumimos uma responsabilidade, assinamos.
Relembremos as palavras de Bakhtin: A consciência viva se torna cultural bem como a consciência cultural se encarna numa cultura viva. O texto literário é produzido, a consciência cultural se encarna numa cultura viva, e se integra no cânone, no repertório cultural da tradição; a consciência viva torna-se cultural. E então, aquele texto que é pravda reintegra-se no istina? Problematizemos um pouco mais. Como diz Barthes (2004), a escritura é o apagamento de toda origem, e o autor está morto, ou, como diz Derrida, “escrever é retirar-se (...) da sua própria escritura (...) deixá-la caminhar sozinha. Abandonar a palavra” (DERRIDA, 1995, p. 61). E, como antes deles, dissera Heidegger: “A linguagem fala. (...) No dito a fala se consuma, mas não se acaba” (HEIDEGGER, 2003, p. 11). Significa dizer que o texto literário, a partir momento que é “exilado da carne” do autor, faz-se aberto ao jogo, livre para significar, torna-se novamente possibilidade de significado que se produzirá na história e poderá tornar-se “válido e inserido num contexto”. E quem atualizará esse significado é o leitor, ou, poder-se-á dizer, o crítico. Istinapravda.
Homi Bhabha nos diz que o discurso do autor está fora de seu controle, ele inaugura a significação, mas não pode controlar seu resultado. Cabe, portanto, ao crítico tentar organizar esse discurso “fora de controle”, “escrever o mundo” e resgatar, nessa organização que é a interpretação do discurso literário, “os passados não ditos, não representados, que assombram o presente histórico” (BHABHA, 2007, p. 34). Sem isso, o texto literário vira abstração, engessa-se. Eis a tarefa ética da crítica, atualizá-lo, colocá-lo em movimento. O crítico deve dar sua contribuição singular no ser do pensamento que é a significação do texto literário, interpretando-o, pensando-o, e neste ato, valorando-o em um contexto que é o seu, lendo o seu mundo por meio do texto literário e o texto literário por meio do seu mundo. O crítico age a assina. Responsabiliza-se. Eis a sua responsabilidade para com o Outro e o outro.
O Outro: conhecimento abstrato e universal; o outro: indivíduo concreto. O sujeito é único e seu discurso, insubstituível; apenas ele, em seu lugar único no ser, poderá perpetrar aquele ato-pensamento que é seu. O Outro que é a cultura, a tradição, precisa dele, precisa da sua contribuição para manter-se vivo. Da mesma forma, o outro, sujeito empírico, também precisa dele, pois a singularidade de um completa o ser do outro.  A literatura precisa do escritor, o texto literário precisa do crítico. O crítico precisa do crítico.
Pravda é, necessariamente, múltipla, pois é infinita a multiplicidade de centros de valores e de sujeitos que participam do ser. O olhar do crítico atualiza o texto literário. O olhar de cada crítico complementa o olhar do outro. A não coincidência com o lugar do outro permite isso. Por isso, são múltiplas as possibilidades de leitura de um texto literário: não contraditórias, e, sim, complementares.
Antes de concluir, gostaria de fazer ainda alguns questionamentos. Marilia Amorim, após apresentar sua leitura das teses de Bakhtin acima citadas fala da incompatibilidade do pensamento do autor russo, notadamente moderno, com a pós-modernidade. De fato, os argumentos por ela apresentados são bastante convincentes, visto que o pensamento pós-moderno destrói a idéia de verdade universal, de identidade a si, que é o próprio conceito de istina. O pensamento de Bakhtin busca um sentido ético para o ato, enquanto que o sujeito pós-moderno sofre de falta de sentido, de algo que o transcenda, um vazio em que não há do que participar.
Mas, se isso é verdade, como explicar a profunda influência que o pensamento de Bakhtin exerce sobre os atuais pensadores da pós-modernidade e do chamado pós-colonialismo? Como explicar que Homi Bhabha e Stuart Hall recorram a ele para formular suas teorias de hibridismo, que, justamente, desconstroem toda possibilidade de pureza e essencialismo étnico, cultural e estético? Ora, o dialogismo bakhtiniano é chave para compreender a ideia da formação do eu pelo olhar do outro, o que anula qualquer concepção de identidade a si do sujeito, de uma identidade essencial. Da mesma forma, a idéia lançada por Bakhtin no seu Marxismo e filosofia da Linguagem de signo ideológico que adquire sentido de acordo com o contexto e a classe que a domina, ou, em outras palavras, do signo enquanto arena onde se desenvolvem as lutas de classe é também base para a desconstrução de uma concepção de cultura de elite, intocável e imaculada, proclamada pelas classes dominantes, dando lugar a compreensão das culturas híbridas do pós-colonialismo (sem deixar de levar em consideração o quanto o conceito de carnavalização é caro à expressão dos vencidos, que buscam unir o “baixo”, a cultura do colonizado, ao “alto”, a do colonizador, num processo nivelador do qual nenhum dos lados sai ileso).
As relações entre o pensamento de Bakhtin e a pós-modernidade constituem um campo amplo e problemático que extrapola os objetivos deste texto. Levantamos aqui estes questionamentos para mostrar que pode ser apressado postular a incompatibilidade entre eles.
Contudo, no sentido em que Marilia Amorim nos coloca a questão, pode-se abrir também uma possibilidade profícua de reavaliação da atividade da crítica literária na contemporaneidade. À pergunta: porque devo criar? Bakhtin responde: porque sou real, não substituível, único. No ponto em que me encontro, ninguém mais se encontra. O que pode ser feito por mim não poderá jamais ser feito por outro. Assim, postula-se o não-alibi no ser, isto é, a falta de justificativa para o sujeito não participar com sua singularidade no ser. O sujeito até pode escolher não assumir a responsabilidade de sua singularidade, pode cometer as imposturas das ações que seriam desprovidas de caráter ético. No entanto, nada pode justificar essa escolha, nem o determinismo cultural e histórico, nem o egoísmo ou o pragmatismo que visa aos interesses próprios. E, nesse ponto, questionamos: será que a crítica literária que se faz em grande profusão nas universidades assume esse compromisso ético do ato? A resposta seria óbvia: algumas sim, outras nem tanto. Contudo, a ideia aqui é pensar as práticas dentro do campo de poder que é a academia. Será que nela há espaço para que o sujeito exerça sua singularidade? Ou será que, com a supervalorização da técnica, dos índices e dos números, cada vez mais a singularidade do sujeito dá lugar à passividade pragmática, tornando-o programado, “impostor”, em nome de seus interesses imediatos (diploma, lugar no mercado de trabalho, remuneração a contento, prestígio)? Será que se faz nas universidades uma crítica que realmente é ato ou meras ações que visam à conveniência e à aceitação?
Deixando em aberto essas questões, faço minhas as palavras da professora Marilia Amorim quando ela diz que

o mundo contemporâneo, com seus valores dominantes, precisa mais do que nunca de Bakhtin e de sua filosofia moral. No entanto, dada a sua profunda diferença com esses valores, ele somente pode ser entendido como ferramenta crítica ou ato de resistência. (AMORIM, 2009, p. 41)

O pensamento de Bakhtin nos permite politizar a crítica literária dentro das universidades, e nos impele a resistir às pressões próprias do campo de poder em que nos inserimos. Parece utópico, mas, lembre-se, não temos nenhuma justificativa para não fazê-lo.

REFERÊNCIAS

AMORIM, Marilia. “Para uma filosofia do ato: ‘válido e inserido no contexto’”. In: BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin: Dialogismo e Polifonia. São Paulo: Contexto. 2009.

BAJTIN, M. M. Hacia uma filosofia Del acto ético. Barcelona: Anthropos, 1997.

BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: HUCITEC, 1981.

_____. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: HUCITEC, 1987.

BARTHES, Roland. O Rumor da Língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

BHABHA, Homi. O Local da Cultura. Belo Horizonte: UFMG. 1998.

DERRIDA, Jaques. A Escritura e a Diferença. São Paulo: Perspectiva. 1995.

HALL, Stuart. Da Diáspora – Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003.

HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem. Petrópolis: Vozes, 2003.




[1] Aluno do Mestrado em Letras — Estudos Literários da Universidade Federal do Pará.

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