segunda-feira, 20 de setembro de 2010

III CÍRCULO RODAS DE CONVERSA BAKHTINIANA DA INTERSUBJETIVIDADE COMO PRINCIPIO ÉTICO



Vera Lúcia Pires (UniRitter/UFSM)
A investigação do ser humano e de suas práticas sociais e discursivas tem sido uma opção de muitos pesquisadores da linguagem, tributários da filosofia bakhtiniana, especificamente, da linguagem como prática social mediadora da experiência do relacionamento entre os seres humanos.
Em Bakhtin, viver é conviver com os outros. Assim, a intersubjetividade é anterior à subjetividade, uma vez que “o pensamento, enquanto pensamento, nasce no pensamento do outro” (Bakhtin, 1979: 329).
É necessário ressaltar que a relação intersubjetiva deve ser estudada por intermédio de um conjunto de noções, de temas ou, para usarmos uma expressão puramente bakhtiniana, de uma arquitetônica referente à palavra como signo ideológico e dialético, ao princípio dialógico, bem como aos discursos do cotidiano e, seguindo Ponzio (2008: 201), ao “humanismo da alteridade”.
O princípio dialógico edifica a alteridade como constituinte do ser humano e de seus discursos. Reconhecer a dialogia é encarar a diferença, uma vez que é a palavra do outro que nos traz o mundo exterior.
Nossa fala, isto é, nossos enunciados (...) estão repletos de palavras dos outros. (Elas) introduzem sua própria expressividade, seu tom valorativo, que assimilamos, reestruturamos, modificamos. (...) Em todo o enunciado, contanto que o examinemos com apuro, (...) descobriremos as palavras do outro ocultas ou semi-ocultas, e com graus diferentes de alteridade. (BAKHTIN, 1979: 314/318).
A alteridade intervém sempre. “Eu vivo em um mundo de palavras do outro.” (Bakhtin, 1979:379). A identidade é, por consequência, um movimento em direção ao outro, um reconhecimento de si pelo outro.
Nos discursos cotidianos, a interação, que une os participantes de uma mesma situação, faz com que eles dividam uma unidade de condições reais de vida, tornando-os solidários e levando-os a apoiar a intersubjetividade verbal em um “nós” discursivo. Esse nós coletivo elabora avaliações sociais, que ressoam, organizando ações e condutas. Tais avaliações, entretanto, não são consensuais, uma vez que “o eu e o outro são, cada um, um universo de valores.” (Faraco, 2003: 22).
As ações que praticamos, baseadas nas avaliações sociais, são atos comprometidos com o grupo social. O caráter compreensivo, responsivo e ético da existência humana apela às pessoas a assumirem responsabilidades. É neste sentido que o ser humano não tem escapatória: “não há álibi para a existência”. (Faraco, 2007; 2003).
Para Bakhtin, “viver significa ocupar uma posição de valores em cada um dos aspectos da vida” (Bakhtin, 1979: 202). O juízo de valor, implicado na responsabilidade/responsividade, parte da relação das palavras/enunciados com a realidade, com seu autor e com as outras palavras anteriores, tecendo uma trama de elementos ideológicos que constituem a linguagem. Nesse sentido, é um princípio ético de valores que orienta as relações entre o ser humano e as alteridades no mundo da vida. O ser humano responde com a sua forma de agir que é um dever ser para si em conjunto com os outros.
O pensador russo pregava uma dimensão irrevogável da responsabilidade ética da existência humana, assumindo o caráter responsável, compreensivo e ativo do ato de responder. Sobre tal perspectiva, Sobral esclarece:
O agir do sujeito é um conhecer em vários planos que une processo (o agir no mundo), produto (a teorização) e valoração (o estético) nos termos de sua responsabilidade inalienável de sujeito humano, de sua falta de escapatória, de sua inevitável condição de ser lançado no mundo e ter ainda assim de dar contas de como nele agiu.” (SOBRAL, 2005: 118.)
A intersubjetividade na linguagem marca o compromisso e a responsabilidade do pesquisador de expressar uma posição conveniente ao seu momento histórico, social e cultural. Seguindo Souza Santos (2004: 71), a concepção humanista de ciências sociais considera a pessoa como autor e sujeito do mundo, colocando a natureza no centro do ser humano.
Como autor do mundo, cabe uma opção epistemológica pelo humanismo. Não podemos esquecer que, várias vezes, a tradição linguística estruturalista, bem como a pós-estruturalista, afastou-se do humanismo, privilegiando a forma acabada em detrimento do processo de intervenção do sujeito humano criador de linguagem.
As relações dialógicas, presentes no diálogo entre os discursos e desses com os leitores, fazem com que eles se posicionem frente às vozes sociais que circulam nos enunciados. Portanto, os enunciados ativam a intersubjetividade entre os interlocutores.
O caráter dialógico é a essência da linguagem. O diálogo como comunhão solidária, coletiva e ativa. E onde mais buscar esse componente essencial, senão nos discursos do cotidiano? Os discursos do cotidiano, inacabados, em permanente mutação, expressam a incompletude do ser que os produz, bem como, expressam a responsabilidade do seu olhar para o outro, um olhar que pode orientar a atividade estética de produção de enunciados.

Referências bibliográficas
BAKHTIN, M. (1979) Estética da criação verbal. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
FARACO, C. A. O estatuto da análise e interpretação dos textos no quadro do Círculo de Bakhtin. In: GUIMARÃES, A. M.; MACHADO, A. R.; COUTINHO, A. O interacionismo sociodiscursivo. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2007.
______ Linguagem e diálogo: as idéias linguísticas do círculo de Bakhtin. Curitiba: Criar Edições, 2003.
PONZIO, A. A revolução bakhtiniana. São Paulo: Contexto, 2008.
SOBRAL, A. Ético e estético. In: BRAIT, B. (org.) Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2004.

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