segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Teses bakhtinianas





por Eduardo Eide Nagai
1.      A amorosidade dialógica nos estudos bakhtinianos.
Mentiram-nos. Disseram-nos que nos amavam. Mas sabemos que a contemporaneidade e toda a história humana que desemboca nessa contemporaneidade mostram-nos um paradoxo. Falam-nos de amor, nunca se falou tanto de amor. Sem amar. Vem-nos outra questão. De que amor, falaram? Falam-nos constantemente do amor à soma das individualidades. Precisamos agora sobretudo amar as relações. Relações de todos os tipos. De todos os lados. Em todas as esferas de nossas vivências. Amar o ódio. Amar o amor. Amar a amizade. Precisamos sobretudo amar o não-amável. Esse é o genuíno amor. Radicalizemos. Amor ao mundo. Amor aos animais e às plantas. Aos amigos e inimigos. Somente assim poderemos compreender a verdadeira dialogia que Bakhtin tanto nos ensinou. A amorosidade dialógica deve ser o centro norteador de todas as relações dos estudos Bakhtinianos.

2.      A materialidade da linguagem na vivência
Estudou-se até hoje sobretudo a linguagem na sua objetividade abstrata ou na sua subjetividade idealista (BAKHTIN, 2002, p. 69). A primeira linha de estudos linguísticos nos ensina a reconhecer o sistema complexo que nos envolve ao mobilizarmos as categorias linguísticas e o transformarmos em discurso. Já a segunda linha nos coloca em uma posição central na produção da língua. Porém cada uma delas faz isso de forma radical, apenas reconhecendo o sistema ou o sujeito. É preciso compreendermos cada uma delas no seu equilíbrio e na sua materialidade. Da mesma forma que o sistema nos empurra, o sujeito o puxa. A luta. A tensão. O conflito gerado nesse diálogo é o que promove a história, a materialidade e a vivência. Se vivemos é porque estamos nos entremeios de um sistema e de uma individualidade dentro do mundo. E o que faltava a essas duas linhas é a noção de vivência que nos coloca face a face com o outro. Com o cotidiano. Com a ordem do discurso. Discurso e vida nos constituem.

3.      A ideologia oficial e a ideologia do cotidiano.
Uma importante transformação epistemológica que Bakhtin dá aos estudos linguísticos é a compreensão do que ele chamou de ideologia do cotidiano. É essa ideologia que o diferencia de Marx. Marx acreditava que a ideologia fosse uma ferramenta que a Burguesia utilizava para concretizar a dominação dos proletários. Ideologia era portanto homogêneo e servia apenas a uma classe social. Já em Bakhtin vemos a distribuição da ideologia para os outros grupos sociais dominados. Portanto, ideologia não é mais um modo de opressão, mas também de libertação. Se para Marx a ideologia apenas escondia a realidade, agora para Bakhtin a ideologia também denuncia. Ideologia do Cotidiano é uma ideologia que transforma a ideologia oficial. Por isso, lá, onde houver uma ideologia oficial, há também uma ideologia do cotidiano funcionando enquanto resistência ao poder hegemônico. A ideologia também não é mais vista como uma ferramenta, mas como uma atividade. Não é vista mais como estável e homogêneo, mas também como algo que se transforma com a sociedade e se constitui na sua heterogeneidade.

4.      O signo linguístico como materialidade ideológica.
Todos os objetos do mundo vivenciam duas realidades, uma existencial e outra semiótica. A primeira realidade trata-se do corpo físico. Dos objetos enquanto carnais. Dos corpos enquanto nervuras que pensam, sentem, sofrem todos os tipos de dores e alívios. Já a realidade semiótica é uma realidade dos objetos enquanto signos. Todo material concreto reflete e refrata uma realidade existencial e uma sígnica. Não podemos, entretanto, separar ambas as realidades, pois sob o nosso olhar o objeto penetra em nossa consciência como uma imagem que significa e produz sentidos que relacionamos em nossa história, em nossa vivência. Essas relações não são abstrações produzidas pelo nosso mero interior, mas relações materiais ideológicas. Podemos dizer que todo signo se constitui de ideologias. É o signo um lugar de embates ideológicos. Onde olhamos, compreendemos os signos a partir de pontos de vista formados por ideologias diversas (tanto oficiais quanto cotidianas). É preciso ressaltar que não é a ideologia que molda o signo, mas este que articula e mobiliza os vínculos ideológicos.

5.      Os gêneros do discurso na constituição da história.
Todas as relações humanas são travadas por intermédio dos gêneros do discurso, que são aquelas formas relativamente estáveis de enunciações concretas. Todos os textos e enunciados filiam-se em algum gênero do discurso, que como já dissemos não pode ser visto como tipos estáveis, mas relativamente estáveis, já que quando se pensa que um gênero fixou seus elementos caracterizadores os sujeitos reorganizam as características de acordo com seu horizonte social, ou seja, com as situações imediatas de enunciação como também com as situações mais amplas. Todos os gêneros constituem-se por conteúdo temático, por estrutura composicional e por estilo verbal. Também é preciso distinguir duas materialidades de gêneros discursivos, uma primária e outra secundária. A primária é a que serve de matéria prima para a outra. É ela que dá a trama e que forma o gênero segundário. Já o gênero secundário é aquele que ressignifica e transforma o primário. O gênero primário forma o secundário e este transforma aquele, de acordo com o horizonte social que envolve o gênero do discurso. Todos os gêneros em algum momento é primário e em um momento posterior é secundário, os gêneros estão em constante transformação.

6.      A dialética e a dialogia da palavra.
Há duas formas de nos relacionarmos com o mundo e com os outros no mundo. A relação dialética é uma relação de forças contrárias que se fundem criando uma nova força ou criando a relação de dominação de uma sobre a outra. Na cotidianeidade percebemos constantemente esse tipo de relação. Um olhar que impede a existência do outro. Já a dialogia também é uma relação de forças, porém nessa relação não há a sobrevivência de uma e a morte de outra, ao contrário, na relação dialógica as forças convivem, interagem. Não de uma forma pacífica, mas de uma forma tensa e contraditória. A luta ideológica que se trava na dialogia não tem vencedores e perdedores, ou melhor, os dois ganham e perdem ao mesmo tempo. As duas forças se transformam de alguma maneira, não de forma consensual, mas de uma forma dissensual. Não há como prever o futuro deste tipo de relação, somente na materialidade semiótica é que podemos compreender a dialogia.

7.      Estética e Ética na arquitetônica do ato.
No livro Para uma filosofia do ato responsável, Bakhtin faz uma reflexão interessantíssima sobre a questão da Estética e da Ética. Para ele, todos os atos responsáveis, ou seja, aqueles atos que nós praticamos na cotidianeidade e que nos fazem sermos singulares, aqueles atos que nos constituem como centros emotivo-volitivos, se concretizam dentro de um universo estético. Nossos atos responsáveis são atos estéticos, possuem uma certa materialidade formal. Como também, nossos atos são éticos e se inserem em um determinado campo ético. Essa ética e essa estética não podem ser vistas como algo estático. Ao contrário, se por um lado a arquitetônica que materializa a ética e a estética é algo dado, é uma força histórica, podemos dizer que ela é também um por vir. Porque é material na sua materialidade discursiva, mas também é uma potência que instabiliza tal matéria. A força do ato coloca tanto ética quanto a estética em jogo. Não podemos confundir. Ambos são universos diferentes que não penetram no outro, mas que estão em jogo na arquitetônica do existir. É sempre no jogo que se travam as relações arquitetônicas da ética e da estética.

8.      Responsabilidade e respondibilidade.
Da mesma forma, o existir nos exige no momento do ato único uma responsabilidade. A responsabilidade de assinarmos nossos nomes em cada um desses atos. Da mesma forma. Sempre que nos deparamos com eles, temos nossa responsabilidade de responder. Não temos alibi para o que pensamos sobre o mundo. Se não temos álibi devemos responder e enunciar nossas palavras. O único que sabe o que se pensa é o próprio ator-autor. Somos atores, porque atuamos no mundo e somos autores porque somos responsáveis por nossos atos. Somente cada um com sua força, com seu centro emotivo-volitivo.

9.      A vivência e a amorosidade na academia e na ciência.
A vida, faz tempo, está longe da tão aclamada academia. Assim como o amor. Não devemos entretanto fugir da academia e tampouco da ciência, o que precisamos nesse momento é colocar no centro das nossas reflexões o sentido dessa ciência e dessa academia e transformá-las. Ressignificá-las. Participar delas enquanto atividade, enquanto gênero discursivo de tal modo que estaremos fazendo um novo modo de academicizar e um novo modo de cientificizar, não no sentido de valorizar a razão em detrimento da paixão, ao contrário, colocar as nossas vivências e nossa amorosidade em contato direto com a racionalidade científica. Também não queremos colocar a emoção em primeiro plano e agredir a racionalidade. Devemos atuar como estudiosos da linguagem movidos 50% pela razão e 50% pela paixão. Assim deveríamos cuidar dos nossos objetos de estudos, enquanto sujeitos. Eis a ciência e a academia que queremos. Que libertemos os objetos e que estes também nos libertem das amarras do olhar técnico e burocrático.

10.  A arquitetônica da liberdade do ato.
Precisamos compreender o lugar da liberdade nos estudos bakhtinianos. Para isso, devemos deslocar nossos olhares. A contemporaneidade tenta nos engolir e ditar suas vozes. Ditar os temas, as ideologias, os gêneros, as éticas e estéticas e as responsabilidades. Porém, a contemporaneidade se esquece de uma coisa: podemos pensar. Podemos responder e construir a contemporaneidade de uma outra maneira. E essa resposta ao mundo da atualidade é o que nos garante a liberdade. Somente nessa esfera da liberdade que podemos garantir a construção de um novo olhar sobre o mundo. Um novo modo de nos relacionarmos no mundo. O olhar, de uma individualidade, deve se deslocar para a coletividade. O olhar, da oficialidade contemporânea, deve deslocar-se para a cotidianeidade. O olhar, da memória do passado, deve deslocar-se para uma memória de futuro. O olhar, da arrogância, deve deslocar-se para a humildade. E por fim, o amor, da soma de individualidades, deve deslocar-se para um amor ao coletivo nas suas interações, nas suas relações vivenciais. Eis os princípios da nossa liberdade do ato. Liberdade que não deve nos engolir, mas servir de ato para uma nova contemporaneidade.




Nenhum comentário:

Postar um comentário